Kid Abelha 30 anos
A
biografia Roberto Carlos em detalhes, do baiano Paulo Cesar de Araújo –
livro injustamente proibido – tem muitos méritos, entre os quais, o de
creditar o sucesso de Roberto também a seu talento como compositor.
Roberto é um grande e carismático cantor, mas poucos estudiosos levam a
sério suas canções com Erasmo, que tratam da vida comum e, por isso
mesmo, falam tanto à gente.
Algo semelhante ocorre com Paula Toller.
Ninguém a chama de poeta, como acontece com seus colegas de geração
Cazuza, Renato Russo e Arnaldo Antunes, este último, um poeta mesmo da
palavra impressa. (Na música popular, se chama alguém de poeta para
emprestar valor às letras das músicas, como se estas fossem coisa
menor).
É mais usual chamar Paula de musa, feito uma Marilyn Monroe
tropical bem resolvida, meio distante meio próxima, leve mas insinuante
nos gestos de palco, mulher do seu tempo, ciente de si, um tanto
pragmática e forte: eu quero você como eu quero.
Um nome
esquisito e canções de rádio e de amor, o Kid Abelha faz 30 anos. A
banda mais assumidamente pop do Brasil, sem o messianismo do Legião
Urbana ou a atitude dos Titâs, tem vocação pro sucesso, e não soa
datada.
Assisti ao show do Kid na Concha Acústica, em Salvador, e
mais uma vez, o desfile de hits foi caudaloso. Em vários momentos, Paula
apenas direciona o microfone pra plateia, que, antecipadamente, já sai
cantando letras inteiras sem precisar de convite pra entrar no coro:
agora você vai embora/ eu não sei o que fazer
ninguém me explicou na escola/ ninguém vai me responder
Educação sentimental II, de Paula, Leoni e Herbert Vianna, do segundo
LP (1985), quando lançada, confirmou o lirismo do primeiro disco, marca
da poética de Leoni, baixista e então principal compositor do grupo. A
perspectiva individual-amorosa, após a saída de Leoni, se ampliou para
dar voz a um mendigo em No meio da rua, e aos mais velhos em Amanhâ é
23, da parceria George Israel e Paula, a partir de então, a letrista
única da banda:
de vez em quando ela dorme no chão/achando a cama muito mole/ eu moro mesmo no meio da rua /pra mim a vida é dura
as entradas do meu rosto /e os meus cabelos brancos/ aparecem a cada ano /no final do mês de Agosto
São faixas de Tomate(1987), em que os Kids parecem falar a si mesmos,
jovens da classe média carioca, através de outros olhares. Muda o foco,
mesmo que ainda sejam canções que tratam de amor e da falta de
comunicação, com exceção do sarro tirado em cima da crítica – que
acusava-os de descartáveis - com a faixa título, que cita o poeta Murilo
Mendes. Nessa fase, Paula também se consagra símbolo sexual em vestes,
gestos e letras, como em Todo meu ouro, parceria com Bruno, George e Lui
Farias:
e volto a ver o teu tamanho saber o teu lugar
As
canções do Kid seguem a tradição de Roberto & Erasmo, de falar pra
muita gente. E hoje, trinta anos depois, não tem por que nem como serem
chamadas de descartáveis. O Kid Abelha permanece por causa das canções.
A guitarra precisa de Bruno, a vivacidade de George e o charme do canto
de Paula existem em função dessas canções, hoje, sem maneirismos que
marcaram os anos oitenta, como a padronização sonora excessiva. Sem
demérito nenhum, o Kid é uma banda de iê iê iê, brasileira, vivaz,
simples, direta e que sabe comunicar.
A loura sabe ser verdadeira,
encarnando, no palco, as coisas que escreve e canta, como se dançasse
numa festinha, despojadamente.
Na Concha, a multidão também cantava,
em pé e de braços levantados, unida em torno de algo indefinível mas
presente. Uma jovem sentada, imersa em si, quase ausente dali, apenas
cantarolava um refrão, sem a companhia de ninguém, como se estivessem só
ela na plateia e a banda no palco, se bastando.
longe do meu domínio
cê vai de mal a pior
Palavras duras, "cascudas" – como diz George – e música doce, que a
gente canta distraidamente e depois se dá conta de que está celebrando a
vida.
te amo pra sempre /te amo demais
até daqui a pouco /até nunca mais
Displicência e um quê de frivolidade: transversalmente, a nódoa no brim de que fala Manuel Bandeira.
A última do show foi o primeiro sucesso da banda: Pintura íntima.
tá ficando tarde /no meu edredom.
Confesso que, naqueles hoje distantes anos oitenta, os versos me intrigavam.
Pura ignorância: na condição de habitante de Salvador, cidade quente, eu não sabia o que era nem nunca tinha visto um edredom.
Domingo que passou, na fria Bahia de agosto, entre edredons, se deu a
mágica do Kid Abelha, fazendo ver o que tem de incomum na vida dos dias
de todos nós, gente comum.
Nenhum comentário:
Postar um comentário