quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Kid Abelha 30 anos


A biografia Roberto Carlos em detalhes, do baiano Paulo Cesar de Araújo – livro injustamente proibido – tem muitos méritos, entre os quais, o de creditar o sucesso de Roberto também a seu talento como compositor. Roberto é um grande e carismático cantor, mas poucos estudiosos levam a sério suas canções com Erasmo, que tratam da vida comum e, por isso mesmo, falam tanto à gente.
Algo semelhante ocorre com Paula Toller. Ninguém a chama de poeta, como acontece com seus colegas de geração Cazuza, Renato Russo e Arnaldo Antunes, este último, um poeta mesmo da palavra impressa. (Na música popular, se chama alguém de poeta para emprestar valor às letras das músicas, como se estas fossem coisa menor). 
É mais usual chamar Paula de musa, feito uma Marilyn Monroe tropical bem resolvida, meio distante meio próxima, leve mas insinuante nos gestos de palco, mulher do seu tempo, ciente de si, um tanto pragmática e forte: eu quero você como eu quero.
Um nome esquisito e canções de rádio e de amor, o Kid Abelha faz 30 anos. A banda mais assumidamente pop do Brasil, sem o messianismo do Legião Urbana ou a atitude dos Titâs, tem vocação pro sucesso, e não soa datada.
Assisti ao show do Kid na Concha Acústica, em Salvador, e mais uma vez, o desfile de hits foi caudaloso. Em vários momentos, Paula apenas direciona o microfone pra plateia, que, antecipadamente, já sai cantando letras inteiras sem precisar de convite pra entrar no coro:
agora você vai embora/ eu não sei o que fazer
ninguém me explicou na escola/ ninguém vai me responder

Educação sentimental II, de Paula, Leoni e Herbert Vianna, do segundo LP (1985), quando lançada, confirmou o lirismo do primeiro disco, marca da poética de Leoni, baixista e então principal compositor do grupo. A perspectiva individual-amorosa, após a saída de Leoni, se ampliou para dar voz a um mendigo em No meio da rua, e aos mais velhos em Amanhâ é 23, da parceria George Israel e Paula, a partir de então, a letrista única da banda:
de vez em quando ela dorme no chão/achando a cama muito mole/ eu moro mesmo no meio da rua /pra mim a vida é dura
as entradas do meu rosto /e os meus cabelos brancos/ aparecem a cada ano /no final do mês de Agosto
São faixas de Tomate(1987), em que os Kids parecem falar a si mesmos, jovens da classe média carioca, através de outros olhares. Muda o foco, mesmo que ainda sejam canções que tratam de amor e da falta de comunicação, com exceção do sarro tirado em cima da crítica – que acusava-os de descartáveis - com a faixa título, que cita o poeta Murilo Mendes. Nessa fase, Paula também se consagra símbolo sexual em vestes, gestos e letras, como em Todo meu ouro, parceria com Bruno, George e Lui Farias:
e volto a ver o teu tamanho saber o teu lugar
As canções do Kid seguem a tradição de Roberto & Erasmo, de falar pra muita gente. E hoje, trinta anos depois, não tem por que nem como serem chamadas de descartáveis. O Kid Abelha permanece por causa das canções.
A guitarra precisa de Bruno, a vivacidade de George e o charme do canto de Paula existem em função dessas canções, hoje, sem maneirismos que marcaram os anos oitenta, como a padronização sonora excessiva. Sem demérito nenhum, o Kid é uma banda de iê iê iê, brasileira, vivaz, simples, direta e que sabe comunicar.
A loura sabe ser verdadeira, encarnando, no palco, as coisas que escreve e canta, como se dançasse numa festinha, despojadamente.
Na Concha, a multidão também cantava, em pé e de braços levantados, unida em torno de algo indefinível mas presente. Uma jovem sentada, imersa em si, quase ausente dali, apenas cantarolava um refrão, sem a companhia de ninguém, como se estivessem só ela na plateia e a banda no palco, se bastando.
longe do meu domínio
cê vai de mal a pior
Palavras duras, "cascudas" – como diz George – e música doce, que a gente canta distraidamente e depois se dá conta de que está celebrando a vida.
te amo pra sempre /te amo demais
até daqui a pouco /até nunca mais

Displicência e um quê de frivolidade: transversalmente, a nódoa no brim de que fala Manuel Bandeira.
A última do show foi o primeiro sucesso da banda: Pintura íntima.
tá ficando tarde /no meu edredom.
Confesso que, naqueles hoje distantes anos oitenta, os versos me intrigavam.
Pura ignorância: na condição de habitante de Salvador, cidade quente, eu não sabia o que era nem nunca tinha visto um edredom.
Domingo que passou, na fria Bahia de agosto, entre edredons, se deu a mágica do Kid Abelha, fazendo ver o que tem de incomum na vida dos dias de todos nós, gente comum.
Fonte:http://terramagazine.terra.com.br/Jequietcong/blog/2012/08/16/kid-abelha-30-anos/

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